terça-feira, 9 de outubro de 2007

Canção de Outono!

Inevitavelmente eu tinha de vos falar no Outono! E porque este ano o Outono é diferente dos outros, porque não faz frio, porque não chove e porque as árvores ainda não se vestiram de folhas envelhecidas, amarelas tingidas de verde, castanhas, ou vermelhas se esvaindo. Tudo se enfeita para receber a estação Outonal. Mas este ano o ar está quente, há cheiros próprios de outra estação, de outros tempos, de outros lugares.
O meu pai deixou-nos no Outono, a minha mãe entristece no Outono.
E, apesar de tudo, eu gosto do Outono...
E porque este ano eu também estou diferente, não me queria repetir e saudar como habitualmente esta estação de mil cores. Por isso vos trouxe um bocadinho da maravilhosa "Canção de Outono" de Alice Vieira.

Canção de Outono

Alice Vieira

“A minha mãe diz sempre que foi por causa do Outono.
Que é sempre assim, quando a areia, o sol, o azul do mar e do céu ficam apenas na nossa memória.
Que as pessoas suportam mal o cheiro a naftalina das camisolas e dos casacos que tiram dos armários, fechados durante tanto tempo. Começam a espirrar, têm alergias e prometem mais uma vez lembrar-se com antecedência que os têm de tirar mais cedo para arejarem.
Então, diz a minha mãe, as pessoas ficam mesmo sem paciência. E gritam. E respondem torto. E têm saudades dos amigos que fizeram e que desapareceram.
E habituam-se mal aos espaços estreitos, aos horários, ao trânsito das ruas, ao telemóvel sempre a tocar uma melodia insuportável mas que têm preguiça de mudar. E – repete muitas vezes a minha mãe – às vezes dizem coisas que não querem. Como se as palavras estivessem cansadas de estar presas e desatinassem boca fora.
E nunca se pode culpar ninguém.
É o Outono, diz a minha mãe.
Nada a fazer.”

Mas eu não acredito que o meu pai tenha saído de casa por causa do Outono. Apesar do que diz a minha mãe. Naquele dia ele levou-me à escola. Lembro-me de
que a professora estava à porta a comer um gelado e
que se riu para ele e ele para ela.
– A comer um gelado com um tempo destes? Daqui a pouco até lhe gelam os lábios...
A professora riu, sacudiu o cabelo e respondeu que qualquer tempo era bom para se comer um gelado, que os portugueses é que tinham a mania de que eles só se
devem comer no Verão.
O meu pai voltou a rir e disse que ela ainda parecia mais criança do que nós. Ela voltou a sacudir a cabeça e disse que não havia tempo certo para se ser criança.
– Tal como para comer gelados – acrescentou.
Por causa do gelado é que eu me lembro deste dia.
Eu com tanta vontade de pedir um ao meu pai, mas sabendo perfeitamente que ele nunca mo iria dar, apesar de ter rido com as palavras da professora.
Claro que também me lembro desse dia por outros motivos. Nessa tarde, quando cheguei da escola, a minha mãe levou-me para o quarto e disse:
– Temos de conversar.
Estremeci. Passei rapidamente em revista todas as possíveis asneiras cometidas nesse dia, e na véspera, e não era capaz de encontrar nada que justificasse aquelas
palavras e os olhos da minha mãe, subitamente tão castanhos. A minha mãe tem olhos verdes quando está bem disposta, e castanhos quando se zanga. O meu pai costumava dizer que bastava olhar para os olhos dela para saber que palavras iriam sair da sua boca.
– Temos de conversar – repetiu ela nessa tarde.
Nessa noite o meu pai não veio jantar. Nem na outra. Nem nas outras que se seguiram. Por causa do Outono, garantia a minha mãe. Por causa dessa tristeza que entra no coração das pessoas quando a chuva se anuncia.
– E quando houver sol, muito sol, o pai volta? – lembro-me de ter perguntado.
Mas a minha mãe não respondeu.
Só os olhos continuaram castanhos e húmidos...

2 comentários:

Elvira Carvalho disse...

Não conhecia o texto e gostei muito. Na verdade acho que não conheço nada da Alice Vieira. Obrigada pela partilha.
Um abraço.

Á margem:
Desejo que a mãe vá vencendo o problema de saude e se recompanha.

Franky disse...

Este texto de Alice Vieira é como uma lufada de ar fresco. Os pequenos nadas, a proibição de um gelado no Inverno, o respeito de um olhar de mãe. Os cheiros do Outono. E o renascer das esperança no amanhecer de um dia de Sol. Simplesmente delicioso.
Adoro ler os livros infanto-juvenil de Alice Vieira, faz-me sentir de novo criança.
A minha mãe, Elvira vive um dia de cada vez, mas cada vez com mais dificuldade.
Obrigada
Um beijinho